segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Calasans Rodrigues e a BN dos anos 40

Para muita gente, especialmente para os cariocas, saudosos foram os anos 40. Deixados de lado a 2ª Guerra Mundial e um bom punhado de arbitrariedades da Era Vargas, o Rio de Janeiro vivia uma de suas melhores épocas. Copacabana era realmente a princesinha do mar.

Pois a Biblioteca Nacional também teve seus bons momentos por aí. Especialmente quando lemos uma reportagem sobre uma preciosidade de seu acervo na antiga revista Sombra, dirigida por Walther Quadros a partir de dezembro de 1940. Repleta de informações sobre viagens, belas-artes e a grã-finagem mundial, além de anúncios de tudo o que tinha de mais chique no Rio dos anos 40 – o grill da piscina do Copacabana Palace, as joias finas Mappin & Webb, o Tennis Club de Petropolis e incontáveis grifes de luxo –, a revista circulava com diagramação moderna e acabamento de primeira qualidade. Era uma espécie de Caras da época, mas com estilo e conteúdo.

Abaixo, o Livrada na Testa toma a liberdade de reproduzir trechos de um artigo de O. Calasans Rodrigues, antigo funcionário da BN nos anos 40, sobre a vida e a obra de Francisco Bartolozzi, publicado originalmente na Sombra nº 1, de dezembro/janeiro de 1940/41:


Francisco Bartolozzi – Notas sobre a vida e a obra de um gravador do sec. XVIII

Por pouco conhecidas que sejam as colleções de livros da nossa Bibliotheca Nacional, maior e mais lastimavel ainda é o silencio que geralmente reina em torno das muitas outras preciosidades postas, ali, à disposição do público.

Uma visita à Secção de Estampas causaria, sem duvida, grande surpresa a quem lá fosse ter, pois encontraria em profusão trabalhos dos maiores artistas que nesse genero se especialisaram: Durer, Rembrandt, Debucourt, etc...

Está largamente representada nessas colecções a obra de Francisco Bartolozzi, o gravador florentino cuja arte se manifestou por forma tão brilhante e cuja vida teve aspectos tão interessantes.

Nascido em Florença, em 1727, Francisco Bartolozzi, anos nove annos, já procurava manejar o buril na officina paterna de Caetano Bartolozzi, ourives florentino, e aos dez conseguiu gravar no cobre uma figura representando duas cabeças. Tal preciosidade surprehendeu seu pae, que desejando corresponder-lhe à vocação resolveu manda-lo para a Academia de Florença, onde iniciou os seus estudos sob a direcção de Ignacio Hugford, artista de certo prestigio naquella occasião.

(…)

Tinha Bartolozzi approximadamente treze annos quando foi entregue aos cuidados de Hugford, e a orientação que o preceptor imprimiu à educação artistica do principiante foi de importancia decisiva para sua carreira. Então, como aconteceu com tantos outros artistas, a Grecia antiga exerceu sobre o estudante sua habitual influencia. A paixão de Bertolozzi pelo antigo é manifesta; toda sua obra revela o quanto elle ficou impregnado da belleza hellenica. Comtudo, os exemplos da arte antiga bem como os dos grandes mestres florentinos formaram apenas uma parte do equipamento mental da sua arte; a observação da realidade, o estudo constante do vivo combinados com o temperamento proprio, foram, sem duvida, a causa do sucesso.

Foi nessa época, sob a direcção do professor inglez (Hugford), que Bartolozzi adquiriu a mestria do desenho tão admirada dos criticos de arte, de tal forma que, gravando um desenho executado por outro artista, sabia corrigir defeitos, melhorar ou aperfeiçoar delineamentos anatomicos, conseguindo assim, na gravura, realçar a belleza da obra original. Esse facto podemos verificar na Secção de Estampas da Bibliotheca Nacional, onde existe na pasta das peças de Bartolozzi uma estampa do artista, ao lado do modelo respectivo: um desenho original do pintor portuguez Henrique José da Silva, representando a
Ascensão do Senhor.

Emquanto estudante na Academia de Florença, Bartolozzi fez relações de amizade com João Baptista Cipriani a quem, mais tarde, deveria encontrar em Londres.

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Roma, a escola de perfeição ambicionada dos artistas, só era alcançada por muitos através de privações e toda a sorte de difficuldades. Ja vimos o jovem Cipriani emprehender essa jornada e a mesma influencia estimulante não faltou a Bartolozzi em sua vida de estudante. O termino dos tres annos de estudos dirigidos por Hugford foi assignalado com uma visita a Roma e, de volta, contando então dezoito annos de idade, elle foi para Veneza, onde, durante seis annos, praticou no atelier de José Wagner, um negociante ao mesmo tempo professor de gravura.

Veneza era então na segunda metade do seculo XVIII o jardim de prazeres da Europa. Escriptor contemporaneo nos descreve a vasta “Piazza”, concorrida por uma multidão formada pelas mais variadas camadas sociaes: senadores envergando vestes rubras; viajantes das capitaes do norte; abbades de cabelleiras empoadas; poetas sem fortuna; “
femmes capricieuses, maris sans cervelle, cavaliers servants”; todos identificados na mesma finalidade – o divertimento, o prazer. É provável que o aprendiz-gravador, apezar de sua idade, não partilhasse dessa vida de prazer que empolgava a cidade magnifica; pelo contrario, esses seis annos talvez tivesse empregado no constante labor e perseverante esforço para melhorar certos detalhes technicos da arte exigidos por Wagner.

Quando regressou a Veneza, depois de curto estagio em Roma, não era mais um aprendiz, mas um gravador consummado, cujo nome já alcançara notoriedade na Europa, no tempo em que monarchas e potentados tinham orgulho em attrahir para si nomes em evidencia nas letras e nas artes. Foi nessa occasião que um acontecimento marcante teve logar na vida de Bartolozzi – a sua ida para a Inglaterra.

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O habil burilista e aguafortista Francisco Bartolozzi, estabelecido na grande metropole (Londres) desde 1764, logo adoptou a nova maneira de gravura e com tal felicidade que cedo eclipsou os poucos artistas que o precederam. Seu temperamento artistico inclinado para a interpretação do bello encontrou na “stipple engraving” o recurso mais valioso, mais adequado e mais rapido para varios generos de gravura, principalmente para o retrato e outros assumptos em que a anatomia artistica predomina e nos quaes a graça e a ligeireza são caracteristicas valiosas.

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Durante trinta annos Bartolozzi exibiu frequentemente nos salões da Academia Real. Trabalhador incansavel, era visto em actividade em sua officina de gravador até tarde da noite para retomar a tarefa no dia seguinte, pelas seis da manhã. Isso explica o elevado numero de 2.200 estampas arroladas por Andrew Tuer (“Bartolozzi and his work”), seu melhor biographo, durante uma longa vida de 88 annos, das quaes 38 vividos na Inglaterra, sua patria adoptiva, onde elle gravou quasi toda sua obra. É bem verdade que nesse numero estão incluidos numerosos pequenos trabalhos, como vinhetas para livros, programmas de bailes, bilhetes de festas de beneficio, etc.

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Em 1802, Bartolozzi, deixando a Inglaterra definitivamente, foi para Lisboa contratado afim de dirigir o curso de gravura na Imprensa Régia.

Não foi tão feliz em Portugal como era de esperar a phase final da carreira do glorioso gravador. Sobrevieram difficuldades ao exercicio das suas actividades no professorado da Imprensa Régia. A idade avançada do mestre de gravura é um dos motivos que um critico portuguez aponta como a causa de algumas contrariedades que teve de enfrentar. Comtudo, conseguiu formar em Portugal uma geração brilhante de gravadores, alguns dos quaes mais tarde vieram para o Rio de Janeiro trabalhar na Imprensa Régia então havia pouco fundada.

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Numerosas chapas gravadas por Bartolozzi e gastas por excessivas tiragens têm sido retocadas e re-estampadas em épocas recentes. A alta cotação das suas estampas tem sido tambem um incentivo à falsificação e imitação, havendo já sido postos à venda exemplares espurios, tão semelhantes aos verdadeiros que illudem aos proprios conhecedores.

O. Calasans Rodrigues

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Aquecimento gelado

crédito da imagem: O Globo

Às 9 da manhã do dia 11, oito servidores do Ministério da Cultura prendem duas faixas anunciando sua paralisação na entrada principal do Edifício Gustavo Capanema, no Rio. Como a chuva fina e o vento gelado parecem ter deixado o restante dos funcionários do MinC em casa, o que dá o tom da manifestação é apenas o conjunto de faixas, que atenta para o não cumprimento do acordo para o plano especial de cargos da cultura, quebrado pelo governo. Os oito servidores mal dão conta do entra-e-sai na entrada do prédio, que abriga, além de escritórios do Iphan, da Funarte e da Biblioteca Nacional, gabinetes do Ministério da Educação, da Embrafilme e da Fundação Nacional do Livro.

“Hoje mais cedo um cara da Embrafilme tava todo estressado aqui, não parava de gritar. É que hoje é o prazo de entrega de papéis da volta dos anistiados da Embrafilme”, diz a servidora Paula Nogueira. Um desses anistiados, ao entrar no Capanema, deseja sorte ao minguado piquete da cultura. Às 9h15, o grupo chega a ficar alguns minutos com apenas três pessoas. Isabel Costa, uma dessas três, faz o que pode: “Trabalho aqui e conheço algumas pessoas que entram, assim de vista, mas não todos”. Pouco tempo depois, cerca de 10 funcionários se aglomeram no piquete.

Às 9h30, os escritórios da Biblioteca Nacional no Edifício Debret estão abertos. Perguntado se haveria expediente naquele dia, o guarda da entrada afirma que sim. Vozes vindas das salas internas confirmam a versão do guarda. Quinze minutos depois, na entrada da Rua México, o piquete do prédio-sede da Biblioteca Nacional reúne 14 pessoas. Elas formam uma linha consistente para barrar a entrada de um eventual fura-greve. Mas, por conta da chuva e do frio, ficam aninhadas do lado de dentro do prédio. Aos que passam na rua, fica a impressão de que quase ninguém cuida da entrada.

Às 10h15, já cerca de 30 pessoas se reúnem no piquete do Capanema. Na BN, após uma breve esvaziada na hora do almoço, o turno da tarde assume a portaria da Rua México (sem contar os funcionários que se aglomeram na entrada principal do prédio). A adesão, no fim das contas, não foi ruim: há quem diga que os números mais baixos de piqueteiros estão nos fins de greve. Estamos, por sinal, preparados para mais uma?

domingo, 2 de agosto de 2009

Fizeram shhh! para a política

No final de uma manhã de julho, Pietro Santiago, Charlene Santos e Amélia Mendes estão sentados no jardim dos fundos da Biblioteca Nacional. Todos na casa dos 20 anos de idade, eles vieram ao Rio para o XXXII Encontro Nacional de Estudantes de Biblioteconomia. Compondo a delegação pernambucana, que, no evento, conta com 19 pessoas, os três são do curso de Biblioteconomia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o único do estado, e participam do Centro Acadêmico local.

A saber, uma série de questões movimenta o encontro. Nesta edição é discutido o papel político do profissional da informação, mesmo com as problemáticas de ordem técnica que afligem a classe bibliotecária. São questões ligadas à proliferação da comunicação eletrônica, à interatividade e à conservação digital. “Pelos debates que temos ainda não chegamos a um consenso. O suporte de hoje poderá ser lido em outras máquinas, no futuro? O novo sempre vai vir e a preocupação maior não é guardar, e sim, disponibilizar futuramente”, expõe Charlene.


Nos últimos anos, o rápido avanço tecnológico na mídia rendeu uma boa dor de cabeça não só para bibliotecários, mas também para outros profissionais, como jornalistas e o empresariado da imprensa. Que o diga o New York Times, que em 2007 se viu obrigado a disponibilizar gratuitamente todo o conteúdo de seu site na Internet, para não fechar a balança no vermelho – e falir, como tantos outros jornalões americanos. De qualquer modo, a discussão sobre novos suportes de informação não norteou o último encontro dos estudantes, ao contrário do que aconteceu em outros anos. Um esforço para uma maior consciência de classe pôde ser notado. “O bibliotecário tem aquele estereótipo da tiazinha de óculos, uma coisa de gente velha. Acho que também por isso hoje se dá importância a discussões sobre tecnologia”, Pietro opina. E Charlene complementa: “Apesar de ser jovem e não usar coque, adoro fazer shhh para os usuários”.

De acordo com anúncio da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), que sedia o evento, o encontro pretende instigar a consciência dos estudantes à reflexão sobre a importância do profissional de biblioteconomia na sociedade. Durante a entrevista, ouvi repetidamente perguntas como “Quem somos nós, como profissionais? Quais são as nossas possibilidades? Qual a postura que temos diante da profissão? Como vamos lidar uns com os outros?”. Sentado em um grande e antigo sofá, que faz as pernas do repórter ficarem quase suspensas no ar, Muniz Sodré, o presidente da Biblioteca Nacional, cita Marshall McLuhan para destacar a busca dos estudantes: “O que muda os indivíduos não é a tecnologia, é o ambiente”. Há tempos a exigência sobre o bibliotecário extrapola sua formação clássica, de contato direto com o livro. Por obra e graça dessa metodologia, hoje insuficiente, Sodré lamenta, de sobrancelhas em pé: “Por isso que os maldosos dizem que o bibliotecário não gosta de livro, gosta de lombada de livro. Isso é maldade”. Para o presidente, o bibliotecário deve estar totalmente imerso “num ambiente sócio-literário”.


Consciência de classe, no entanto, não significa mobilização política. Angela Salles, bibliotecária lotada na Biblioteca Nacional desde 1991, julga a politização de seus colegas “Quase inexistente. Em nossa última greve, que abrangia todo o Ministério da Cultura, poucos funcionários participaram dos movimentos. Dos 400 servidores, cerca de 60 se dispunham a comparecer à porta da instituição, mesmo sendo a luta por melhoria salarial”. Tal falta de consciência, pelo menos para Luciana Grings, coordenadora de serviços bibliográficos do Centro de Processos Técnicos da BN, onde trabalha desde 2006, parece permear também o cotidiano do bibliotecário, independente de mobilizações. Situação grave, já que “a inserção do bibliotecário como figura política é intrínseca às suas atividades. Depende da postura profissional, da sua ética, da sua imparcialidade, prover o acesso aos documentos ou não. Ser bibliotecário é exercer uma forma silenciosa de censura”. Politização, ao que parece, não se resume a piquete.

Parte da desarticulação política do bibliotecário pode ter uma justificativa: a falta de valorização de sua própria função de classe, alimentada por um cotidiano de atuação desconexo com profissionais de outras esferas. Sodré explica: “Quem me diz que a sociologia tem algum rigor? Não pode ser o sociólogo. O rigor de uma disciplina do saber está dado fora dela. Portanto, o bibliotecário só pode ser melhor bibliotecário quando se prestar ao sacrifício ritual pelo outro”. Na ordem prática, a BN se depara com um problema exposto por Grings como a inexistência de uma “comunicação ideal entre os servidores dos diferentes setores. Não vejo também uma prática de comunicação interna que seja realmente eficaz”. Salles até exemplifica: “Não faz muito tempo pude impedir que uma terceira base de dados sobre editores fosse criada, dando ciência sobre o trabalho já desenvolvido”. Nesse sentido, os profissionais da BN têm algo a aprender com os estudantes do encontro nacional, que esperam que o mesmo seja cada vez mais “um encontro de profissionais da informação, não só de bibliotecários”, nas palavras de Charlene.

A vontade estudantil para a participação, ao que tudo indica, existe. Mesmo com os percalços de uma carreira no funcionalismo público. Apressados pela moça da organização do evento, para onde precisam voltar, no final da entrevista Amélia, Charlene e Pietro expressam sua vontade de integrar o quadro de funcionários da BN. Falo para eles que, nesse caso, não se pode esperar por grandes salários. Ao que Amélia rebate: “Mas ou ganho bem ou trabalho onde quero. Tem a questão da paixão e do status que a BN tem. Quando chegamos aqui pela primeira vez, paramos na escadaria e ficamos...” A expressão boquiaberta que a entrevistada assume se traduz em sinceros respeito e admiração.

Ao saber da vontade dos estudantes, o presidente da BN relata, algo orgulhoso: “Há instituições, mesmo dentro do serviço público, que dignificam o estar ali. Eles devem ter sido tocados por esse espírito. Você vê que não é a questão só do dinheiro. Se fosse, eu estaria aqui hoje sozinho, porque os funcionários ganham muito mal”. “Sou uma dessas pessoas que largou um emprego onde ganhava mais para vir trabalhar aqui”, revela Grings. “Acho esse idealismo admirável e acredito que são essas pessoas que podem vir a criar melhores condições para a classe, com seu empenho e dedicação. Precisamos desses profissionais na Biblioteca”.

Confira abaixo a entrevista com Muniz Sodré, na íntegra.


Mesmo com as constantes discussões a respeito das novas tecnologias na conservação de acervos, no XXXII Encontro Nacional de Estudantes de Biblioteconomia a pauta principal foi outra: a dimensão política do profissional de informação. O que você acha da escolha dessa discussão?

A grande questão da tecnologia, no que diz respeito à comunicação, é a interatividade. Portanto, a possibilidade de troca, quando se troca informação. São as categorias que, do ponto de vista social, efetivamente são ensejadas, são colocadas em grande plano, pelas novas tecnologias. No caso do livro, isso é muito evidente. Mesmo que seja desagradável de ler, é possível tecnicamente transferir o livro (para o suporte digital).Agora, com relação à formação dos bibliotecários, é preciso nunca esquecer o seguinte: que por maiores que sejam as inovações tecnológicas, a interatividade não é propriedade da máquina. Ou seja, a interatividade não surge (na máquina). É possibilitada pela máquina, mas é uma propriedade da máquina. A interatividade é social. Então é uma coisa que (Marshall) McLuhan dizia: o que muda o homem, o que muda os indivíduos, não é a tecnologia, o que muda é o ambiente. Então, eu diria que os novos bibliotecários têm que aprender, digamos, a saber mais sobre o seu ambiente do que apenas cruzamentos sobre livros. A formação clássica do bibliotecário é o cuidado direto com o livro. Por isso que os maldosos dizem que o bibliotecário não gosta de livro, gosta de lombada de livro. Isso é maldade. Não podemos julgar o bibliotecário por isso. Mas sem dúvida nenhuma, essas transformações tecnológicas obrigam o estudante de biblioteconomia a saber mais sobre isso que eu estou chamando de ambiente. Sabendo sobre o ambiente ele se compromete com a causa da leitura, que é social. Ele lê tradicionalmente quando os pais liam em casa. Eu já conheci gente que me disse que não lia um livro há dez anos e falava razoavelmente sobre economia... Se dizia: isso é uma farsa, você não cita livros! Mas ele dizia: eu escuto. Em casa a família lia. Então o pai e a mãe eram essenciais. Depois, os colegas, o meio onde circula e as incitações que o próprio Estado pode dar para a leitura. Isso se chama ambiência. Você tem hoje dois grandes ambientes: o ambiente histórico, das relações de família, comunidade, e o ambiente criado pela própria mídia, pela tecnologia, que eu chamo, em um de meus livros, de bios como esfera de vida virtual. O bios midiático. É preciso não deixar você ser engolfado totalmente por este, mas todos os dois são ambientes. Eu diria, portanto, que a formação do bibliotecário é cada vez mais considerar o livro uma parte central em sua formação. Ele tem que se formar num ambiente sócio-literário.

De certa forma, a escolha dessa pauta nova pode ser vista como uma certa maturidade?

Sim, acho uma boa pauta.

E qual você acha que é o nível de politização do profissional de biblioteconomia, na Biblioteca Nacional?

Veja bem, não sou bibliotecário. E conheço pouco, na verdade, a consciência do profissional de biblioteconomia. Mas pelo meu contato, eu diria que a questão política é muito fraca. Em si, a politização do bibliotecário pra mim não parece muito grande ou pertinente. No ambiente, talvez venha a ser, por causa da abertura do ambiente. Quando ele é muito fechado ele, evidentemente, é sediado por bibliotecários que são até extremados, dogmáticos... Mas isso é uma coisa individual. Coletivamente, eu diria que a questão política é pouco acesa, pouco viva no meio da biblioteconomia.

Tanto os estudantes que entrevistei quanto funcionários daqui da BN acham a mesma coisa. Ainda com relação à interatividade, os estudantes bateram muito nessa tecla, falando que tudo que é preservado só o é pra que um dia seja mostrado. Mas existe um meio-termo, nem tudo o que é preservado pode ser acessível. A Bíblia de Mogúncia, por exemplo.

Eu acho que a tudo se deve dar acesso, essa é a grande virtude da tecnologia, no momento. Vou dar um exemplo aqui da BN: aqui tem um programa da Petrobras, para restaurar, higienizar e digitalizar mapas do século XVI ao século XVIII. Esses mapas antes eram manuseados por pesquisadores. Você manuseia um mapa, mesmo com luvas, com muito cuidado, aquilo vai estragar de algum modo. Hoje esse mapas tão aí, no site (http://www.bn.br/). Essa gestão incrementou muito a questão da digitalização. Nós hoje fazemos parte da Biblioteca Mundial Digital. E por uma ação nossa o português é uma das línguas (englobadas), além das línguas da ONU. A isso o governo às vezes parece não dar muita atenção, mas houve um tempo, nesse país, em que a língua brasileira, cada vez que era valorizada, merecia aplausos. Isso eu tenho que ficar repetindo às pessoas, e elas dizem: “Ah, é? Que bom”.Então, eu acho que a digitalização é pra dar acesso. Aí você falou na Bíblia de Mogúncia. Veja só: o conteúdo da Bíblia de Mogúncia está aí. Ele está dado. Você não precisa pegar na Bíblia de Mogúncia pra ter o conteúdo dela. Agora, qual o porquê dela estar aí? Porque tem livros, tem objetos, que têm aura. Que são auráticos. Assim como a Monalisa, no Louvre, assim como os grandes quadros, que são protegidos. Quando eu morei na França pela primeira vez, se eu fosse um louco, eu arranhava a Monalisa, que não tinha proteção nenhuma. Hoje já é mantida à distância, tá protegida, porque já tiveram loucos que tentaram destruir a Monalisa. Então são objetos auráticos porque têm um valor simbólico, além do seu valor de uso visual. E que representam, em determinados momentos da história, das ideias, da cultura, que o contato com ele é mais aurático, mais simbólico, do que propriamente o uso. A Bíblia de Mogúncia é um objeto dessa ordem. É uma obra de arte. Essa bíblia não está aí pra ser lida. Está aí pra ser vista de vez em quando, e quanto menos ela for vista, maior o valor de aura dela. Ele aumenta por ela ser uma raridade. É como o capital, para os economistas clássicos: o capital é gerado por escassez. O valor de aura da Bíblia de Mogúncia é gerado pela escassez do olhar sobre ela para o grande público. Agora, o conteúdo está dado. Então ela é protegida, é guardada, é valiosa, muito por isso. É um pouco como ouro. Por que ele é um equivalente geral? Porque o ouro se exclui como mercadoria consumível. Ele pode ser trocado porque ele é raro. É exatamente quando o objeto bem se exclui que ele serve para troca geral. Ter a Bíblia de Mogúncia aqui é como ouro estocado no Fort Knox, nos Estados Unidos. Ele garante um certo valor do dólar. O que que a Bíblia de Mogúncia nos garante, como ouro? Nós somos o Fort Knox do sentido simbólico do livro.

Outro ponto que os estudantes falaram muito foi que eles esperam que esse encontro de estudantes de biblioteconomia seja cada vez menos só de bibliotecários, mas de profissionais da informação, como um todo.

Claro, em nenhuma profissão todo o saber garante o seu rigor. Quem me diz que a sociologia tem algum rigor? Não pode ser o sociólogo. O rigor de uma disciplina do saber está dado fora dela. Quem garante o rigor do bibliotecário é o usuário. Portanto, o bibliotecário só pode ser melhor bibliotecário quando ele se prestar ao sacrifício ritual pelo outro. Quando ele for simbolicamente comido pelo leitor. O valor do bibliotecário não está na biblioteconomia, está fora dela, nos outros discursos. Pra ser bibliotecário tem que se ter o discurso do outro, ainda que não seja um discurso técnico. É o discurso da pergunta boba. Qualquer pessoa, a qualquer momento, tem alguma coisa a lhe ensinar, seja ignorante, seja muito sábio. Você aprende porque faz perguntas pertinentes. Há pouco tempo atrás, numa discussão, um militar grosso, falou: “Eu não sei por que as pessoas pintam quadros. Pra quê serve? Por que não tirar uma foto?”. Uma parente dele ficou com vergonha, “é ignorante, está atacando a cultura”. Mas eu gosto dessas perguntas. O cara não sabe, ele não quer apenas agredir. Essa expressão da ignorância dele é movida um pouco pela ignorância dos outros. E eu perguntei pra pintora: “Você sabe por quê pinta?” E ela não sabia. Eu também não sei direito, mas nós podemos descobrir juntos. Os bibliotecários, na medida que não fiquem somente no seu ramerrão técnico, vão aprender mais sobre o que fazem.

Muito pelo status, os estudantes que entrevistei se mostraram empolgados para vir trabalhar aqui na BN. Mesmo tendo, em seus estados, possibilidades de emprego com melhores salários. O que você acha que eles sentiriam quando estivessem aqui?


Eu acho que há instituições, mesmo dentro do serviço público, que dignificam o estar ali. Pelo que observo, aqui é uma pletora heterogênea de pessoas, com mil cabeças. Há pessoas que fazem concurso e saem logo, mas o funcionário mais antigo tem um certo orgulho de pertencer à BN. Às vezes (ele) tem até uma autoridade moral sobre os dirigentes. Depois, o que está aqui dentro é valioso. É preciso dignificar a instituição. Já estive em repartições que você não tem nenhum compromisso com o lugar onde está pisando. Aqui tem. Então eles devem ter sido tocados por esse espírito. Você vê que não é a questão só do dinheiro. Se fosse, eu estaria aqui hoje sozinho, porque os funcionários ganham muito mal. Quando eu vejo esse negócio aí no Senado, em Brasília, eu fico com vergonha. Sinceramente, sou uma pessoa casta. Às vezes eu entro aí envergonhado com o salário que ganham os terceirizados, depois os funcionários. Tanto que fiz agora uma licitação pra poder dar um aumento à classe terceirizada. É um absurdo. Um cara todo engravatado, o motorista, parece até o presidente da Biblioteca Nacional, ganha muito pouco. Mas (o funcionário da BN) tem um salário que ninguém tem em Brasília. É um salário de dignidade institucional. Ele vai ter outro discurso, menos mesquinho. Eu sou muito a favor do serviço público. Eu trabalhei em empresa privada e, quando eu deixei o jornal pra trabalhar na universidade, fui ganhar quatro vezes menos do que eu ganhava em imprensa. E nunca me arrependi disso. Quem mais dá emprego no país é o serviço público. Porque o capital não gosta de gente. O Estado ainda tem uma ligação (com o homem). Aí tem o clientelismo, tem o colonialismo, tudo isso é verdade. Mas ele gosta de gente. Gostar de gente é poder dar emprego.