segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Calasans Rodrigues e a BN dos anos 40

Para muita gente, especialmente para os cariocas, saudosos foram os anos 40. Deixados de lado a 2ª Guerra Mundial e um bom punhado de arbitrariedades da Era Vargas, o Rio de Janeiro vivia uma de suas melhores épocas. Copacabana era realmente a princesinha do mar.

Pois a Biblioteca Nacional também teve seus bons momentos por aí. Especialmente quando lemos uma reportagem sobre uma preciosidade de seu acervo na antiga revista Sombra, dirigida por Walther Quadros a partir de dezembro de 1940. Repleta de informações sobre viagens, belas-artes e a grã-finagem mundial, além de anúncios de tudo o que tinha de mais chique no Rio dos anos 40 – o grill da piscina do Copacabana Palace, as joias finas Mappin & Webb, o Tennis Club de Petropolis e incontáveis grifes de luxo –, a revista circulava com diagramação moderna e acabamento de primeira qualidade. Era uma espécie de Caras da época, mas com estilo e conteúdo.

Abaixo, o Livrada na Testa toma a liberdade de reproduzir trechos de um artigo de O. Calasans Rodrigues, antigo funcionário da BN nos anos 40, sobre a vida e a obra de Francisco Bartolozzi, publicado originalmente na Sombra nº 1, de dezembro/janeiro de 1940/41:


Francisco Bartolozzi – Notas sobre a vida e a obra de um gravador do sec. XVIII

Por pouco conhecidas que sejam as colleções de livros da nossa Bibliotheca Nacional, maior e mais lastimavel ainda é o silencio que geralmente reina em torno das muitas outras preciosidades postas, ali, à disposição do público.

Uma visita à Secção de Estampas causaria, sem duvida, grande surpresa a quem lá fosse ter, pois encontraria em profusão trabalhos dos maiores artistas que nesse genero se especialisaram: Durer, Rembrandt, Debucourt, etc...

Está largamente representada nessas colecções a obra de Francisco Bartolozzi, o gravador florentino cuja arte se manifestou por forma tão brilhante e cuja vida teve aspectos tão interessantes.

Nascido em Florença, em 1727, Francisco Bartolozzi, anos nove annos, já procurava manejar o buril na officina paterna de Caetano Bartolozzi, ourives florentino, e aos dez conseguiu gravar no cobre uma figura representando duas cabeças. Tal preciosidade surprehendeu seu pae, que desejando corresponder-lhe à vocação resolveu manda-lo para a Academia de Florença, onde iniciou os seus estudos sob a direcção de Ignacio Hugford, artista de certo prestigio naquella occasião.

(…)

Tinha Bartolozzi approximadamente treze annos quando foi entregue aos cuidados de Hugford, e a orientação que o preceptor imprimiu à educação artistica do principiante foi de importancia decisiva para sua carreira. Então, como aconteceu com tantos outros artistas, a Grecia antiga exerceu sobre o estudante sua habitual influencia. A paixão de Bertolozzi pelo antigo é manifesta; toda sua obra revela o quanto elle ficou impregnado da belleza hellenica. Comtudo, os exemplos da arte antiga bem como os dos grandes mestres florentinos formaram apenas uma parte do equipamento mental da sua arte; a observação da realidade, o estudo constante do vivo combinados com o temperamento proprio, foram, sem duvida, a causa do sucesso.

Foi nessa época, sob a direcção do professor inglez (Hugford), que Bartolozzi adquiriu a mestria do desenho tão admirada dos criticos de arte, de tal forma que, gravando um desenho executado por outro artista, sabia corrigir defeitos, melhorar ou aperfeiçoar delineamentos anatomicos, conseguindo assim, na gravura, realçar a belleza da obra original. Esse facto podemos verificar na Secção de Estampas da Bibliotheca Nacional, onde existe na pasta das peças de Bartolozzi uma estampa do artista, ao lado do modelo respectivo: um desenho original do pintor portuguez Henrique José da Silva, representando a
Ascensão do Senhor.

Emquanto estudante na Academia de Florença, Bartolozzi fez relações de amizade com João Baptista Cipriani a quem, mais tarde, deveria encontrar em Londres.

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Roma, a escola de perfeição ambicionada dos artistas, só era alcançada por muitos através de privações e toda a sorte de difficuldades. Ja vimos o jovem Cipriani emprehender essa jornada e a mesma influencia estimulante não faltou a Bartolozzi em sua vida de estudante. O termino dos tres annos de estudos dirigidos por Hugford foi assignalado com uma visita a Roma e, de volta, contando então dezoito annos de idade, elle foi para Veneza, onde, durante seis annos, praticou no atelier de José Wagner, um negociante ao mesmo tempo professor de gravura.

Veneza era então na segunda metade do seculo XVIII o jardim de prazeres da Europa. Escriptor contemporaneo nos descreve a vasta “Piazza”, concorrida por uma multidão formada pelas mais variadas camadas sociaes: senadores envergando vestes rubras; viajantes das capitaes do norte; abbades de cabelleiras empoadas; poetas sem fortuna; “
femmes capricieuses, maris sans cervelle, cavaliers servants”; todos identificados na mesma finalidade – o divertimento, o prazer. É provável que o aprendiz-gravador, apezar de sua idade, não partilhasse dessa vida de prazer que empolgava a cidade magnifica; pelo contrario, esses seis annos talvez tivesse empregado no constante labor e perseverante esforço para melhorar certos detalhes technicos da arte exigidos por Wagner.

Quando regressou a Veneza, depois de curto estagio em Roma, não era mais um aprendiz, mas um gravador consummado, cujo nome já alcançara notoriedade na Europa, no tempo em que monarchas e potentados tinham orgulho em attrahir para si nomes em evidencia nas letras e nas artes. Foi nessa occasião que um acontecimento marcante teve logar na vida de Bartolozzi – a sua ida para a Inglaterra.

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O habil burilista e aguafortista Francisco Bartolozzi, estabelecido na grande metropole (Londres) desde 1764, logo adoptou a nova maneira de gravura e com tal felicidade que cedo eclipsou os poucos artistas que o precederam. Seu temperamento artistico inclinado para a interpretação do bello encontrou na “stipple engraving” o recurso mais valioso, mais adequado e mais rapido para varios generos de gravura, principalmente para o retrato e outros assumptos em que a anatomia artistica predomina e nos quaes a graça e a ligeireza são caracteristicas valiosas.

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Durante trinta annos Bartolozzi exibiu frequentemente nos salões da Academia Real. Trabalhador incansavel, era visto em actividade em sua officina de gravador até tarde da noite para retomar a tarefa no dia seguinte, pelas seis da manhã. Isso explica o elevado numero de 2.200 estampas arroladas por Andrew Tuer (“Bartolozzi and his work”), seu melhor biographo, durante uma longa vida de 88 annos, das quaes 38 vividos na Inglaterra, sua patria adoptiva, onde elle gravou quasi toda sua obra. É bem verdade que nesse numero estão incluidos numerosos pequenos trabalhos, como vinhetas para livros, programmas de bailes, bilhetes de festas de beneficio, etc.

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Em 1802, Bartolozzi, deixando a Inglaterra definitivamente, foi para Lisboa contratado afim de dirigir o curso de gravura na Imprensa Régia.

Não foi tão feliz em Portugal como era de esperar a phase final da carreira do glorioso gravador. Sobrevieram difficuldades ao exercicio das suas actividades no professorado da Imprensa Régia. A idade avançada do mestre de gravura é um dos motivos que um critico portuguez aponta como a causa de algumas contrariedades que teve de enfrentar. Comtudo, conseguiu formar em Portugal uma geração brilhante de gravadores, alguns dos quaes mais tarde vieram para o Rio de Janeiro trabalhar na Imprensa Régia então havia pouco fundada.

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Numerosas chapas gravadas por Bartolozzi e gastas por excessivas tiragens têm sido retocadas e re-estampadas em épocas recentes. A alta cotação das suas estampas tem sido tambem um incentivo à falsificação e imitação, havendo já sido postos à venda exemplares espurios, tão semelhantes aos verdadeiros que illudem aos proprios conhecedores.

O. Calasans Rodrigues

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