domingo, 2 de agosto de 2009

Fizeram shhh! para a política

No final de uma manhã de julho, Pietro Santiago, Charlene Santos e Amélia Mendes estão sentados no jardim dos fundos da Biblioteca Nacional. Todos na casa dos 20 anos de idade, eles vieram ao Rio para o XXXII Encontro Nacional de Estudantes de Biblioteconomia. Compondo a delegação pernambucana, que, no evento, conta com 19 pessoas, os três são do curso de Biblioteconomia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o único do estado, e participam do Centro Acadêmico local.

A saber, uma série de questões movimenta o encontro. Nesta edição é discutido o papel político do profissional da informação, mesmo com as problemáticas de ordem técnica que afligem a classe bibliotecária. São questões ligadas à proliferação da comunicação eletrônica, à interatividade e à conservação digital. “Pelos debates que temos ainda não chegamos a um consenso. O suporte de hoje poderá ser lido em outras máquinas, no futuro? O novo sempre vai vir e a preocupação maior não é guardar, e sim, disponibilizar futuramente”, expõe Charlene.


Nos últimos anos, o rápido avanço tecnológico na mídia rendeu uma boa dor de cabeça não só para bibliotecários, mas também para outros profissionais, como jornalistas e o empresariado da imprensa. Que o diga o New York Times, que em 2007 se viu obrigado a disponibilizar gratuitamente todo o conteúdo de seu site na Internet, para não fechar a balança no vermelho – e falir, como tantos outros jornalões americanos. De qualquer modo, a discussão sobre novos suportes de informação não norteou o último encontro dos estudantes, ao contrário do que aconteceu em outros anos. Um esforço para uma maior consciência de classe pôde ser notado. “O bibliotecário tem aquele estereótipo da tiazinha de óculos, uma coisa de gente velha. Acho que também por isso hoje se dá importância a discussões sobre tecnologia”, Pietro opina. E Charlene complementa: “Apesar de ser jovem e não usar coque, adoro fazer shhh para os usuários”.

De acordo com anúncio da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), que sedia o evento, o encontro pretende instigar a consciência dos estudantes à reflexão sobre a importância do profissional de biblioteconomia na sociedade. Durante a entrevista, ouvi repetidamente perguntas como “Quem somos nós, como profissionais? Quais são as nossas possibilidades? Qual a postura que temos diante da profissão? Como vamos lidar uns com os outros?”. Sentado em um grande e antigo sofá, que faz as pernas do repórter ficarem quase suspensas no ar, Muniz Sodré, o presidente da Biblioteca Nacional, cita Marshall McLuhan para destacar a busca dos estudantes: “O que muda os indivíduos não é a tecnologia, é o ambiente”. Há tempos a exigência sobre o bibliotecário extrapola sua formação clássica, de contato direto com o livro. Por obra e graça dessa metodologia, hoje insuficiente, Sodré lamenta, de sobrancelhas em pé: “Por isso que os maldosos dizem que o bibliotecário não gosta de livro, gosta de lombada de livro. Isso é maldade”. Para o presidente, o bibliotecário deve estar totalmente imerso “num ambiente sócio-literário”.


Consciência de classe, no entanto, não significa mobilização política. Angela Salles, bibliotecária lotada na Biblioteca Nacional desde 1991, julga a politização de seus colegas “Quase inexistente. Em nossa última greve, que abrangia todo o Ministério da Cultura, poucos funcionários participaram dos movimentos. Dos 400 servidores, cerca de 60 se dispunham a comparecer à porta da instituição, mesmo sendo a luta por melhoria salarial”. Tal falta de consciência, pelo menos para Luciana Grings, coordenadora de serviços bibliográficos do Centro de Processos Técnicos da BN, onde trabalha desde 2006, parece permear também o cotidiano do bibliotecário, independente de mobilizações. Situação grave, já que “a inserção do bibliotecário como figura política é intrínseca às suas atividades. Depende da postura profissional, da sua ética, da sua imparcialidade, prover o acesso aos documentos ou não. Ser bibliotecário é exercer uma forma silenciosa de censura”. Politização, ao que parece, não se resume a piquete.

Parte da desarticulação política do bibliotecário pode ter uma justificativa: a falta de valorização de sua própria função de classe, alimentada por um cotidiano de atuação desconexo com profissionais de outras esferas. Sodré explica: “Quem me diz que a sociologia tem algum rigor? Não pode ser o sociólogo. O rigor de uma disciplina do saber está dado fora dela. Portanto, o bibliotecário só pode ser melhor bibliotecário quando se prestar ao sacrifício ritual pelo outro”. Na ordem prática, a BN se depara com um problema exposto por Grings como a inexistência de uma “comunicação ideal entre os servidores dos diferentes setores. Não vejo também uma prática de comunicação interna que seja realmente eficaz”. Salles até exemplifica: “Não faz muito tempo pude impedir que uma terceira base de dados sobre editores fosse criada, dando ciência sobre o trabalho já desenvolvido”. Nesse sentido, os profissionais da BN têm algo a aprender com os estudantes do encontro nacional, que esperam que o mesmo seja cada vez mais “um encontro de profissionais da informação, não só de bibliotecários”, nas palavras de Charlene.

A vontade estudantil para a participação, ao que tudo indica, existe. Mesmo com os percalços de uma carreira no funcionalismo público. Apressados pela moça da organização do evento, para onde precisam voltar, no final da entrevista Amélia, Charlene e Pietro expressam sua vontade de integrar o quadro de funcionários da BN. Falo para eles que, nesse caso, não se pode esperar por grandes salários. Ao que Amélia rebate: “Mas ou ganho bem ou trabalho onde quero. Tem a questão da paixão e do status que a BN tem. Quando chegamos aqui pela primeira vez, paramos na escadaria e ficamos...” A expressão boquiaberta que a entrevistada assume se traduz em sinceros respeito e admiração.

Ao saber da vontade dos estudantes, o presidente da BN relata, algo orgulhoso: “Há instituições, mesmo dentro do serviço público, que dignificam o estar ali. Eles devem ter sido tocados por esse espírito. Você vê que não é a questão só do dinheiro. Se fosse, eu estaria aqui hoje sozinho, porque os funcionários ganham muito mal”. “Sou uma dessas pessoas que largou um emprego onde ganhava mais para vir trabalhar aqui”, revela Grings. “Acho esse idealismo admirável e acredito que são essas pessoas que podem vir a criar melhores condições para a classe, com seu empenho e dedicação. Precisamos desses profissionais na Biblioteca”.

Confira abaixo a entrevista com Muniz Sodré, na íntegra.


Mesmo com as constantes discussões a respeito das novas tecnologias na conservação de acervos, no XXXII Encontro Nacional de Estudantes de Biblioteconomia a pauta principal foi outra: a dimensão política do profissional de informação. O que você acha da escolha dessa discussão?

A grande questão da tecnologia, no que diz respeito à comunicação, é a interatividade. Portanto, a possibilidade de troca, quando se troca informação. São as categorias que, do ponto de vista social, efetivamente são ensejadas, são colocadas em grande plano, pelas novas tecnologias. No caso do livro, isso é muito evidente. Mesmo que seja desagradável de ler, é possível tecnicamente transferir o livro (para o suporte digital).Agora, com relação à formação dos bibliotecários, é preciso nunca esquecer o seguinte: que por maiores que sejam as inovações tecnológicas, a interatividade não é propriedade da máquina. Ou seja, a interatividade não surge (na máquina). É possibilitada pela máquina, mas é uma propriedade da máquina. A interatividade é social. Então é uma coisa que (Marshall) McLuhan dizia: o que muda o homem, o que muda os indivíduos, não é a tecnologia, o que muda é o ambiente. Então, eu diria que os novos bibliotecários têm que aprender, digamos, a saber mais sobre o seu ambiente do que apenas cruzamentos sobre livros. A formação clássica do bibliotecário é o cuidado direto com o livro. Por isso que os maldosos dizem que o bibliotecário não gosta de livro, gosta de lombada de livro. Isso é maldade. Não podemos julgar o bibliotecário por isso. Mas sem dúvida nenhuma, essas transformações tecnológicas obrigam o estudante de biblioteconomia a saber mais sobre isso que eu estou chamando de ambiente. Sabendo sobre o ambiente ele se compromete com a causa da leitura, que é social. Ele lê tradicionalmente quando os pais liam em casa. Eu já conheci gente que me disse que não lia um livro há dez anos e falava razoavelmente sobre economia... Se dizia: isso é uma farsa, você não cita livros! Mas ele dizia: eu escuto. Em casa a família lia. Então o pai e a mãe eram essenciais. Depois, os colegas, o meio onde circula e as incitações que o próprio Estado pode dar para a leitura. Isso se chama ambiência. Você tem hoje dois grandes ambientes: o ambiente histórico, das relações de família, comunidade, e o ambiente criado pela própria mídia, pela tecnologia, que eu chamo, em um de meus livros, de bios como esfera de vida virtual. O bios midiático. É preciso não deixar você ser engolfado totalmente por este, mas todos os dois são ambientes. Eu diria, portanto, que a formação do bibliotecário é cada vez mais considerar o livro uma parte central em sua formação. Ele tem que se formar num ambiente sócio-literário.

De certa forma, a escolha dessa pauta nova pode ser vista como uma certa maturidade?

Sim, acho uma boa pauta.

E qual você acha que é o nível de politização do profissional de biblioteconomia, na Biblioteca Nacional?

Veja bem, não sou bibliotecário. E conheço pouco, na verdade, a consciência do profissional de biblioteconomia. Mas pelo meu contato, eu diria que a questão política é muito fraca. Em si, a politização do bibliotecário pra mim não parece muito grande ou pertinente. No ambiente, talvez venha a ser, por causa da abertura do ambiente. Quando ele é muito fechado ele, evidentemente, é sediado por bibliotecários que são até extremados, dogmáticos... Mas isso é uma coisa individual. Coletivamente, eu diria que a questão política é pouco acesa, pouco viva no meio da biblioteconomia.

Tanto os estudantes que entrevistei quanto funcionários daqui da BN acham a mesma coisa. Ainda com relação à interatividade, os estudantes bateram muito nessa tecla, falando que tudo que é preservado só o é pra que um dia seja mostrado. Mas existe um meio-termo, nem tudo o que é preservado pode ser acessível. A Bíblia de Mogúncia, por exemplo.

Eu acho que a tudo se deve dar acesso, essa é a grande virtude da tecnologia, no momento. Vou dar um exemplo aqui da BN: aqui tem um programa da Petrobras, para restaurar, higienizar e digitalizar mapas do século XVI ao século XVIII. Esses mapas antes eram manuseados por pesquisadores. Você manuseia um mapa, mesmo com luvas, com muito cuidado, aquilo vai estragar de algum modo. Hoje esse mapas tão aí, no site (http://www.bn.br/). Essa gestão incrementou muito a questão da digitalização. Nós hoje fazemos parte da Biblioteca Mundial Digital. E por uma ação nossa o português é uma das línguas (englobadas), além das línguas da ONU. A isso o governo às vezes parece não dar muita atenção, mas houve um tempo, nesse país, em que a língua brasileira, cada vez que era valorizada, merecia aplausos. Isso eu tenho que ficar repetindo às pessoas, e elas dizem: “Ah, é? Que bom”.Então, eu acho que a digitalização é pra dar acesso. Aí você falou na Bíblia de Mogúncia. Veja só: o conteúdo da Bíblia de Mogúncia está aí. Ele está dado. Você não precisa pegar na Bíblia de Mogúncia pra ter o conteúdo dela. Agora, qual o porquê dela estar aí? Porque tem livros, tem objetos, que têm aura. Que são auráticos. Assim como a Monalisa, no Louvre, assim como os grandes quadros, que são protegidos. Quando eu morei na França pela primeira vez, se eu fosse um louco, eu arranhava a Monalisa, que não tinha proteção nenhuma. Hoje já é mantida à distância, tá protegida, porque já tiveram loucos que tentaram destruir a Monalisa. Então são objetos auráticos porque têm um valor simbólico, além do seu valor de uso visual. E que representam, em determinados momentos da história, das ideias, da cultura, que o contato com ele é mais aurático, mais simbólico, do que propriamente o uso. A Bíblia de Mogúncia é um objeto dessa ordem. É uma obra de arte. Essa bíblia não está aí pra ser lida. Está aí pra ser vista de vez em quando, e quanto menos ela for vista, maior o valor de aura dela. Ele aumenta por ela ser uma raridade. É como o capital, para os economistas clássicos: o capital é gerado por escassez. O valor de aura da Bíblia de Mogúncia é gerado pela escassez do olhar sobre ela para o grande público. Agora, o conteúdo está dado. Então ela é protegida, é guardada, é valiosa, muito por isso. É um pouco como ouro. Por que ele é um equivalente geral? Porque o ouro se exclui como mercadoria consumível. Ele pode ser trocado porque ele é raro. É exatamente quando o objeto bem se exclui que ele serve para troca geral. Ter a Bíblia de Mogúncia aqui é como ouro estocado no Fort Knox, nos Estados Unidos. Ele garante um certo valor do dólar. O que que a Bíblia de Mogúncia nos garante, como ouro? Nós somos o Fort Knox do sentido simbólico do livro.

Outro ponto que os estudantes falaram muito foi que eles esperam que esse encontro de estudantes de biblioteconomia seja cada vez menos só de bibliotecários, mas de profissionais da informação, como um todo.

Claro, em nenhuma profissão todo o saber garante o seu rigor. Quem me diz que a sociologia tem algum rigor? Não pode ser o sociólogo. O rigor de uma disciplina do saber está dado fora dela. Quem garante o rigor do bibliotecário é o usuário. Portanto, o bibliotecário só pode ser melhor bibliotecário quando ele se prestar ao sacrifício ritual pelo outro. Quando ele for simbolicamente comido pelo leitor. O valor do bibliotecário não está na biblioteconomia, está fora dela, nos outros discursos. Pra ser bibliotecário tem que se ter o discurso do outro, ainda que não seja um discurso técnico. É o discurso da pergunta boba. Qualquer pessoa, a qualquer momento, tem alguma coisa a lhe ensinar, seja ignorante, seja muito sábio. Você aprende porque faz perguntas pertinentes. Há pouco tempo atrás, numa discussão, um militar grosso, falou: “Eu não sei por que as pessoas pintam quadros. Pra quê serve? Por que não tirar uma foto?”. Uma parente dele ficou com vergonha, “é ignorante, está atacando a cultura”. Mas eu gosto dessas perguntas. O cara não sabe, ele não quer apenas agredir. Essa expressão da ignorância dele é movida um pouco pela ignorância dos outros. E eu perguntei pra pintora: “Você sabe por quê pinta?” E ela não sabia. Eu também não sei direito, mas nós podemos descobrir juntos. Os bibliotecários, na medida que não fiquem somente no seu ramerrão técnico, vão aprender mais sobre o que fazem.

Muito pelo status, os estudantes que entrevistei se mostraram empolgados para vir trabalhar aqui na BN. Mesmo tendo, em seus estados, possibilidades de emprego com melhores salários. O que você acha que eles sentiriam quando estivessem aqui?


Eu acho que há instituições, mesmo dentro do serviço público, que dignificam o estar ali. Pelo que observo, aqui é uma pletora heterogênea de pessoas, com mil cabeças. Há pessoas que fazem concurso e saem logo, mas o funcionário mais antigo tem um certo orgulho de pertencer à BN. Às vezes (ele) tem até uma autoridade moral sobre os dirigentes. Depois, o que está aqui dentro é valioso. É preciso dignificar a instituição. Já estive em repartições que você não tem nenhum compromisso com o lugar onde está pisando. Aqui tem. Então eles devem ter sido tocados por esse espírito. Você vê que não é a questão só do dinheiro. Se fosse, eu estaria aqui hoje sozinho, porque os funcionários ganham muito mal. Quando eu vejo esse negócio aí no Senado, em Brasília, eu fico com vergonha. Sinceramente, sou uma pessoa casta. Às vezes eu entro aí envergonhado com o salário que ganham os terceirizados, depois os funcionários. Tanto que fiz agora uma licitação pra poder dar um aumento à classe terceirizada. É um absurdo. Um cara todo engravatado, o motorista, parece até o presidente da Biblioteca Nacional, ganha muito pouco. Mas (o funcionário da BN) tem um salário que ninguém tem em Brasília. É um salário de dignidade institucional. Ele vai ter outro discurso, menos mesquinho. Eu sou muito a favor do serviço público. Eu trabalhei em empresa privada e, quando eu deixei o jornal pra trabalhar na universidade, fui ganhar quatro vezes menos do que eu ganhava em imprensa. E nunca me arrependi disso. Quem mais dá emprego no país é o serviço público. Porque o capital não gosta de gente. O Estado ainda tem uma ligação (com o homem). Aí tem o clientelismo, tem o colonialismo, tudo isso é verdade. Mas ele gosta de gente. Gostar de gente é poder dar emprego.

Um comentário:

  1. É sempre muito prazeroso ler, ouvir, absolver as palavras do professor Sodré.
    Quando realizamos em 2007 a 1º Semana de Integração Acadêmica dos Estudantes de Biblioteconomia da UNIRIO, ele chegou a ser convidado, mas por motivos profissionais ele não pode comparecer. Hoje é possível perceber a quanto ele poderia e ainda pode contribuir com nossa categoria.
    Com relação ao aspecto citado de despolitização dos Bibliotecários, essa é uma grande verdade. Há muito insistimos nessa questão, mas os êxitos foram poucos.
    Sobre o encontro é preciso dizer que, embora o tema tenha sido fundamental e até mesmo corajoso, não aconteceram grandes avanços pra não dizer nem um na discussão política, em virtude, em grande medida, dessa postura apática dos estudantes de Biblioteconomia frente às questões políticas. Falo isso não condição de quem por três anos participou ativamente no Diretório Acadêmico dos estudantes de Biblioteconomia, sem, contudo, ter tido o prazer de realizar uma assembléia com mais de cinco estudantes presentes.

    Att,

    Francisco de Paula Araújo
    Ex-presidente do DA de Biblioteconomia da UNIRIO.

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